Renato Piau (guitarra e voz) em QUE LOUCURA, de Sérgio Sampaio - Hospício do Engenho de Dentro/RJ

O vídeo de ontem em Boa Viagem que mostra a dona de um veículo Volvo atropelando (de propósito!) três pessoas com as quais havia discutido segundos antes porque parou em cima da faixa de pedestres, me leva a uma pequena reflexão:

1ª) Não devemos jamais confundir loucura com perversidade;

2ª) Mas se existem pessoas perversas que querem se passar por loucas, por que não reativar o velho hospício do Engenho de Dentro (no Rio de Janeiro) para ali dar tratamento de louco a essas pessoas?

Essa suposta louca de ontem merecia ficar trancada numa cela individual, pequena, sem ventilação, sem latrina para aprender a respeitar os direitos do próximo. E por que não merecer também sessões seguidas de eletrochoque daquelas que provocam convulsões contínuas? E depois disso, doses cavalares de barbitúricos misturados com remédios para esquizofrenia de maneira que fosse deixada dois dias dopada somente para ver se acordava uma pessoa melhor.

Não, não sou tão ruim assim a ponto de desejar a essa mulher não identificada, coisas não tão festivas que destoam do seu dia-a-dia, talvez cheio de encantamento e encômios. Mas é impossível não pensar na sua ruindade.

Falei desse modo porque é do meu conhecimento que pessoas não perversas (que nem ela) foram para aquele hospício e lá passaram por todos esses dramas e constrangimentos. Vou citar apenas uma delas. Uma que ganhou uma música (QUE LOUCURA, de 1976) de um compositor popular, também poeta e alcoólatra que morreu de pancreatite aos 47 anos. Uma pessoa cujo pai ganhou uma música de Caetano Veloso (CAJUÍNA, de 1979) na primeira visita que lhe fez em Teresina, poucos anos após a morte do seu filho que se suicidara. A mesma pessoa que depois de morta teve uma de suas poesias musicadas pelo grupo de rock Titãs (GO BACK, de 1988, poesia de 1971) que ainda hoje é apontada como um dos seus maiores sucessos. Mas de quem estou falando? Do poeta da Tropicália, Torquato Pereira de Araújo Neto. Não, ele não foi o poeta da Tropicália porque esta era muito doida e Torquato sempre foi muito sadio mentalmente. Ele era um poeta existencialista. Um dos maiores que este país teve!

Por que foi internado no hospício do Engenho de Dentro? Por ser viciado em álcool e “seus amigos dizerem que ele perdeu a razão”. No seu prontuário famoso, um dos psiquiatras que o atenderam, escreveu o seguinte: “paciente com psicose delirante. Diz que fez música com Caetano Veloso e Gilberto Gil”. O médico era um inculto. Torquato havia realmente composto músicas com Caetano e Gil. Não havia delírio algum nisso. E tome eletrochoque e remédios para afastar os delírios psicóticos! Não se adaptando entre os internados com transtornos mentais, Torquato fugiu do hospício e foi beber na Pizzaria Guanabara, no Leblon. Um médico do hospital, que também bebia por lá, o reconheceu, conversou com ele, pediu que voltasse ao hospício e falou com a direção para que aquele paciente fosse transferido para sua enfermaria com vistas a lhe dar um tratamento mais humanizado. Não adiantou muito porque pouco tempo depois que saiu de lá, ele escreveu alguns poemas, separou-se da mulher e do filho, deixou sobre a mesa um bilhete curtíssimo que dizia “pra mim chega” e abriu o gás em 10/11/1972, um dia após completar 28 anos.

Reflexão final: somos intolerantes com a suposta loucura das pessoas, mas com a perversidade de algumas delas, devemos ser o quê? Cartas à redação!

Torquato Neto foi um gênio da sua geração. Enquanto ele agonizava com sua mente inquieta, achando-se desprezado por todos, Caetano e Gil, seus amigos desde o tempo que estudou em Salvador, rebolavam pelos palcos deste Brasil, naquele 1972, sem dar a mínima bola para ele. Depois que morreu, seu pai ganhou música de Caetano e Gil musicou mais alguns poemas seus. E assim caminha a Humanidade!

Rendo-me ao talento de Sérgio Sampaio que compôs QUE LOUCURA em homenagem ao falecido amigo Torquato e também ao talento de Renato Piau, cantor e guitarrista do Piauí, seu conterrâneo, que a regravou em 1998 como ninguém mais fará porque não é fácil colocar num blues aquele “sentimento do mundo” de que falava Drummond. Viva Torquato, ele que com apenas 18 anos, escreveu uma poesia contestando Vinícius de Moraes:

Bilhetinho sem maiores consequências, de 1962

Uma retificação, meu caro Vinícius:
você falou em “bares repletos de homens vazios”
e no entanto se esqueceu
de que há bares
lares
teatros, oficinas
aviões, chiqueiros
cheinhos (ao contrário)
de homens cheios
homens cheios.
(e você bem sabe)
Entulhados da primeira à última geração
de imoralidade desta vida
as cotidianas encruzilhadas e decepções
da patente inconsequência disso tudo.
Você se esqueceu
Vinícius, meu bom,
dos bares que estão repletos de homens cheios
da maldade insaciável
dos que fazem as coisas
e organizaram os fatos...

(Texto de Abílio Neto em homenagem a Torquato Neto, este vítima dos médicos que "cuidam" de supostos doentes mentais !)